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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

Teologia do Domínio: Fundamentos – I

No momento em que os nacionalistas cristãos se tornem a maioria do eleitorado, então a profecia será cumprida
05/06/2024 | 08h40

Passo a passo

Nas colunas anteriores, analisei discursos de duas manifestações bolsonaristas, assinalando o protagonismo crescente do nacionalismo cristão e da Teologia do Domínio no cenário político brasileiro.

A conclusão a que cheguei é muito pouco encorajadora: a defesa da submissão da política à religião deixou de ser um projeto a ser debatido somente no interior dos templos, evitando sua exposição no espaço público.

Hoje, pelo contrário, a explicitude das falas nos dias 25 de fevereiro, em São Paulo, e 21 de abril, no Rio de Janeiro, deverá ser estudada num futuro próximo — esperemos que não tão próximo assim… — como um autêntico rito de passagem. Nada menos do que um grito de guerra.

Não exagero.

Principiemos pelo ômega: os parágrafos finais de ensaio programático de Gary North:

“A trégua ao humanismo chegou ao fim. Uma guerra está em curso.”

Recordemos as palavras do General Douglas MacArthur: “não há substituto para a vitória”. [1]

Mantenho nosso acordo: veja por si mesmo.

 

A referência ao General MacArthur é tão assustadora quanto esclarecedora. Um dos poucos militares norte-americanos a chegar à patente de general do Exército, foi comandante-supremo das Forças Aliadas, de 1945 a 1951. Foi ele o representante oficial que recebeu a Rendição do Japão em 2 de setembro de 1945, além de supervisionar a ocupação do país de 1945 a 1951.

Entre as suas frases constantemente repetidas, e que descrevem à perfeição o plano de poder abraçado por Gary North, encontra-se a máxima, “Você será lembrado pelas regras que quebra” (You will be remembered by the rules you break), mas, claro, apenas se a derrota não substituir a vitória. Tradução nada diplomática: numa guerra, a única regra que nunca pode ser desrespeitada é a seguinte: faça o que for necessário para não perder.

No contexto desse ensaio, portanto, recorrer ao célebre militar equivale a sintetizar com brutalidade um argumento por si só brutal: a Nova Direita Cristã deverá superar sua “esquizofrenia” ou não conquistará o poder político.

(Espere um quase nada e explico o que é essa “esquizofrenia”).

Um passo atrás

Voltemos agora ao alfa. No princípio já existia a Interpretação Literatista. Releiamos dois versículos do Gênesis:

“E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.

— Crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem sobre a terra.” [2]

O versículo 28 é decisivo: a própria fundação do princípio teonomista que anima a Teologia do Domínio.

Vamos por partes.

Melhor: primeiro, consultemos a King James Bible, a título de paralelo.

“So God created man in his own image, in the image of God created he him; male and female created he them.

And God blessed them, and God said unto them, Be fruitful, and multiply, and replenish the earth and subdue it: and have dominion over the fish of the sea, and over the fowl of the air, and over the cattle, and over every living thing that moveth upon the earth.” [3]

A versão foi patrocinada pelo Rei Jaime I — uso, como consagrado, Jaime em lugar de Tiago. 54 tradutores trabalharam por 7 anos para publicar a Bíblia em inglês, em 1611. Utilizada incialmente pela Igreja Anglicana, tornou-se um dos motores da língua e da cultura inglesa.

O paralelo da Bíblia do Peregrino com a King James Bible é iluminador. A passagem em inglês, a fonte para o desenvolvimento da Teologia do Domínio, abriu caminho para uma dupla interpretação.

De um lado, criados por Deus, devemos “have dominion over” a terra e tudo o que nela haja; de outro, como corolário do postulado anterior, temos autorização para submeter as instituições humanas à letra da Bíblia. E, acredite, embora saiba que seja difícil, esta passagem:

 

“enchei a terra e submetei-a (…)”

“replenish the earth and subdue it (…)”

 

justifica o negacionismo climático, tão frequente entre os adeptos do nacionalismo cristão, pois Deus teria concedido ao homem amplos poderes para explorar como bem lhe aprouver,

 

“todos os animais que se movem sobre a terra.”

“every living thing that moveth upon the earth.”

 

Incluindo nesse rol, claro está, a própria terra. Adão, nomeador e cuidador da Natureza, é substituído pelo pesadelo do extrativista em busca do lucro imediato.

O teonomismo é derivado dessa leitura, ela também predadora do texto bíblico, advogando uma forma de governo que se submeta à “lei divina”, tal como expressa nas Escrituras.

A guerra anunciada por Gary North tem como finalidade o estabelecimento de uma teocracia cristã. O pulo do gato hermenêutico consiste em traduzir “criativamente” o versículo 27 — “homem e mulher os criou” — adicionando um termo não só inexistente como também impossível no Antigo Testamento — “homem e mulher, cristãos, os criou.

A guerra cultural, nesse horizonte fundamentalista, assume o centro da cena, no papel de arauto do futuro, que se deve construir no dia a dia por meio da conquista de corações e mentes:

“A lei de Deus será imposta. Isso levará tempo. Uma religião minoritária não pode fazer isso. A teocracia deve emanar do coração da maioria dos cidadãos (…)”. [4]

(Desinibição que recorda os discursos de Michelle Bolsonaro e de pastores-políticos como Silas Malafaia)

Pois é: a tradução não forçou a mão. A contundência está no original.

 

O espírito fundamentalista dessa citação é reforçado pela leitura interessada do Salmo 8:

 

“Quando contemplo teu céu, obra de teus dedos,

a lua e as estrelas que dispuseste,

o que é o homem para que dele te lembres,

o filho do Adão para que dele te ocupes?

Tu o fizeste pouco menos do que um deus,

de glória e de honra o coroaste,

deste-lhe o domínio sobre todas as obras de tuas mãos;

sob seus pés tudo submeteste;” [5]

 

A versão em inglês soa um pouco mais enfática

“When I consider thy heavens, the work of thy fingers, the moon and stars, which thou hast ordained;

What is man, that thou art mindful of him? and the son of man, that thou visitest him?

For thou hast made him a little lower than the angels, and hast crowned him with glory and honour.

Thou madest him to have dominion over the works of thy hands; thou hast put all things under his feet;” [6]

 

Ora, ao fim e ao cabo, a intepretação literalista das duas passagens não é assim tão literal, pois, para serem usadas como pedra angular da Teologia do Domínio, é preciso fugir do texto.

Isto é, toda vez que se leia “homem”, deve-se entender “cristão”! Trata-se de evidente contrabando hermenêutico, especialmente porque as perícopes foram extraídas do Antigo Testamento — inteiramente alheio, por motivos óbvios, ao conceito de cristão.

(Leitura literalista — ‘pero no mucho’.)

Dois passos

Realista, Gary North reconheceu que “uma religião minoritária não pode fazer isso”, ou seja, tomar o poder político. Daí, a “esquizofrenia” da Nova Direita Cristã norte-americana no início da década de 1980. Incapazes de interferir efetivamente na determinação de políticas públicas, os cristãos se viram compelidos a aceitar o “mito” da neutralidade.

No vocabulário especial de North, neutralidade refere-se ao caráter laico dos Estados modernos. Essa separação entre política e religião é exatamente o que a Teologia do Domínio almeja superar. Mas, se o nacionalismo cristão permanecer minoritário, que fazer?

A pergunta é revolucionária em sua origem. Título do romance epocal de Nikolai Tchernychevskii, “Que fazer?” inovou no tratamento da questão da libertação da mulher e da transformação das relações sociais no dia a dia.

O autor o escreveu enquanto estava preso por motivos políticos; publicado em 1862, o romance teve enorme influência na Rússia czarista. Karl Marx aprendeu russo para lê-lo no original!

Em 1902, profundamente marcado pela leitura, Valdimir Lênin lançou o ensaio “Que fazer?”, no qual sistematizou a ideia de partido revolucionário como condição para o avanço da luta proletária.

O ensaio de Gary North, “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”, pode ser lido como um verdadeiro “Que fazer?” dos adeptos da Teologia do Domínio.

Vejamos o desenho da estratégia de dois passos em direção à teocracia cristã.

  • Primeiro passo:

“As principais igrejas de qualquer sociedade estão todas buscando o poder, de modo que sua ideia de legislação legal se torne predominante. Todas elas estão totalmente dispostas a usar o ideal da liberdade religiosa como um artifício para obter poder, até que chegue o dia em que o aborto seja legalizado (negando o direito à vida aos bebês) ou proibido (negando a cada mulher o “direito de controle sobre seu próprio corpo”, após a concepção). Todos falam sobre a liberdade religiosa, mas ninguém acredita nela.” [7]

Duvida? Pois traduza por conta própria.

O comentário é praticamente ocioso, dada a franqueza do autor: as igrejas “estão buscando o poder”. A finalidade é abertamente teocrática, distopia fundamentalista na veia, trata-se de impor “sua ideia de legislação legal”.

A noção de liberdade religiosa é aceita como “um artifício”. De que forma os termos são solidários? Como fingir que se aceita a liberdade de culto levaria à ascensão política?

  • O segundo passo esclarece:

“A tática adequada deve ser baseada em uma estratégia de longo prazo. Eis a tática: usar a versão dos humanistas de liberdade religiosa, baseada no mito da neutralidade, para ganhar tempo. Mas não nos deixemos enganar. Estamos ganhando tempo para reconstruir o mundo. Essa reconstrução envolverá, em última análise, um retorno à lei bíblica abrangente, em todas as esferas da vida. Quando isso acontecer — não por meio de uma revolução, mas pela pregação constante do evangelho e pelo autogoverno progressivo de cidadãos cristãos cumpridores da lei bíblica — a nova ordem social retornará à doutrina da liberdade cristã estabelecida no Antigo Testamento e na República Constitucional dos EUA, antes de 1865. Estamos ganhando tempo, não para perpetuar o mito da neutralidade, mas para subvertê-lo, já que hoje em dia ninguém acredita de fato nele.” [8]

Já sei! Aqui vai: leia o arrazoado no original.

 

Não há mesmo nada oculto que não venha a ser revelado e divulgado. Confiante, Gary North repete-se: “in order to gain time”, “We are gaining time”. Compreende-se, afinal, essa é “uma estratégia de longo prazo”.

Em que consiste?

Você já sabe: voltarei ao tema na próxima coluna, mas não deixarei de adiantar o sentido da tática defendida de maneira tão extrovertida.

Primeiro passo: aproveita-se o “mito” da liberdade religiosa para que a “religião minoritária” ganhe mais fiéis, de modo a deixar de ser… minoritária. É preciso ganhar tempo — para tanto.

Segundo passo: no momento em que os nacionalistas cristãos se tornem a maioria do eleitorado, ou pelo menos sejam numerosos o bastante para desequilibrar eleições majoritárias, então a profecia será cumprida: “A lei de Deus será imposta”. A teocracia será o regime dominante e a teonomia finalmente constituirá o poder político.

Teoria conspiratória? Você acabou de ler o ensaio de Gary North…

E se eu lhe disser que essa estratégia também se apoia numa leitura literalista do versículo 28 do Gênesis?

E se acrescentar que é possível apresentar uma cronologia precisa da aplicação da estratégia dos dois passos no Brasil das últimas 3 décadas?

E se eu sugerir que os discursos de Michelle Bolsonaro são apenas a ponta do iceberg?

 

(Mas, agora sim, você deve esperar pela próxima coluna.)

 

[1] Gary North. “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”. In: James B Jordan. The Failure of the American Baptist Culture. Christianity and Civilization. N° 1, Spring 1982. Geneva Divinity School, p. 40. Tradução de José Luiz Rangel.
[2] Gênesis 1:27-28. Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006, p. 17.
[3] Genesis 1:27-28. The Bible. Authorized by King James with Apocrypha. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 2, grifos meus.
[4] Gary North. “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”. Op. cit., p. 25.
[5] Salmos 8:4-7. Bíblia do Peregrino. Op. cit., p. 1158. Na sequência, repete-se, quase literalmente, o que se disse no Gênesis.
[6] Psalms 8:3-6. The Bible. Authorized by King James with Apocrypha. Op. cit., p. 643. Na sequência, repete-se, quase literalmente, o que se disse no Gênesis.
[7] Gary North. “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”. Op. cit., p. 25.
[8] Idem, p. 36, grifos do autor.

 

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