Por Valter Mattos da Costa*
Donald Trump, ao anunciar tarifas globais sobre importações, sugeriu que o povo norte-americano deveria aceitar com coragem os impactos da medida. As dificuldades, segundo ele, são parte necessária de uma suposta revolução econômica que recolocaria os Estados Unidos no centro do mundo.
Curiosamente, algo semelhante, resguardadas as devidas proporções, foi dito por Adolf Hitler em seu bunker, em Berlim, quando tudo já estava perdido. Cercado por soviéticos, o líder nazista vociferou contra o povo alemão, acusando-o de fraqueza, de covardia, de ter traído seu projeto de domínio absoluto. Para ele, se a Alemanha fracassou, o povo deveria perecer junto com o Reich.
O paralelismo é incômodo, mas didático. Não se trata de igualar os fatos históricos. A comparação, aqui, tem função conceitual.
A Segunda Guerra Mundial começou com o ataque alemão à Polônia; a “guerra” de Trump, com a imposição de barreiras comerciais a vários países, principalmente à China. De um lado, tanques e blitzkrieg; de outro, tarifas e narrativas. O exagero é deliberado, mas ajuda a iluminar a continuidade de certas estruturas de pensamento autoritário.

Militares da SS em formação para saudar o Führer, Adolf Hitler. (Imagem: Hulton Archive)
O fascismo não é apenas um regime histórico, é também uma forma de organização social e subjetiva. Nele, a população é vista como massa funcional ao projeto do líder. A identidade coletiva se constrói pela obediência. O amor à pátria não é carinho pelo povo, mas instrumento de poder.
A Escola de Frankfurt, especialmente Theodor Adorno e Max Horkheimer, analisou esse fenômeno em profundidade. O autoritarismo moderno, segundo eles, não emerge apenas pela força bruta, mas por uma adesão emocional da sociedade ao discurso de força, ordem e pureza. O fascista não precisa amar o povo, basta dominá-lo.
Sigmund Freud, com o texto “Psicologia das massas e a análise do eu”, de 1921, já havia percebido o mecanismo psíquico que permite tal adesão. Na massa, o indivíduo rebaixa o pensamento crítico e transfere seu ideal de ego ao líder. A multidão não pensa, repete. Freud chamava isso de identificação “libidinal”: todos se amam porque todos amam o mesmo chefe.
Erich Fromm ampliou essa análise. Em personalidades autoritárias, como Hitler, o amor à nação é apenas uma fantasia narcisista. Quando o povo não mais corresponde, é descartado. Trump, com menos virulência verbal, mas igual desapego, também sugere que o sofrimento da população é aceitável, desde que o projeto não seja interrompido.
O povo, nessa lógica, é meio, não fim. É instrumento de glória para o projeto de poder. A coragem exigida não é para enfrentar a injustiça, mas para suportar as consequências dela. Em nome da nação, sacrifica-se a própria nação.
O neofascismo contemporâneo conserva essa essência. Disfarçado sob o verniz da legalidade e do marketing, defende a disciplina, o nacionalismo, o culto ao empreendedorismo, a criminalização da pobreza e o rechaço à solidariedade internacional. Em vez de fardas pardas, ostentam-se camisetas com as cores da bandeira nacional. Em vez de campos de extermínio, nos EUA trumpistas, erguem-se muros fiscais e sanitários.
Jair Bolsonaro, no Brasil, representa outro desdobramento desse neofascismo, travestido de populismo moralizante. Apoiado por um discurso antissistêmico, atacou instituições democráticas enquanto exaltava armas, autoritarismo, valores nacionalistas e a lógica da obediência cega (não à toa, seus seguidores são chamados de “gado”).
Paradoxalmente, os Estados Unidos, historicamente defensores do livre comércio, adotam políticas protecionistas sob a administração Trump, enquanto a China se apresenta como promotora da liberalização comercial, buscando consolidar sua influência econômica global.
Gramsci alertava que, nos momentos de “crise orgânica” — ruptura prolongada entre a base social, real, e a superestrutura, da ideologia —, as velhas estruturas de domínio buscam soluções autoritárias travestidas de vontade popular. Assim, o novo fascismo não nega a democracia, apenas a esvazia. Promete “liberdade”, mas, em verdade, exige obediência.
Enquanto a História é reescrita em memes, e discursos histéricos são convertidos em slogans, urge resgatar o pensamento crítico. A educação deve oferecer à juventude a chave para compreender as engrenagens do poder. O fascismo não retorna com tanques, mas com promessas de grandeza nacional.
Entre o bunker e a Casa Branca, entre o colapso e a retórica, o fio condutor é o mesmo: a instrumentalização do povo em nome de um projeto de dominação. Contra isso, pensar continua sendo um ato de resistência.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.
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