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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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A trajetória do Messias Bolsonaro: Davi e Daniel

Associação do Messias Bolsonaro com o rei Davi é central na estratégia de manipulação
17/05/2024 | 20h09

Avenida Paulista

No dia 25 de fevereiro o cenário estava montado e com uma atração especial: um imponente trio elétrico atravessava a avenida Paulista, promessa de uma profecia que, por fim, se cumpriu independentemente das míticas 72 horas.

Isto é, o ato em defesa de Bolsonaro, convocado pelo pastor Silas Malafaia, reuniu 185 mil pessoas, segundo cômputo do Monitor do Debate Político no Meio Digital (USP). Número nada desprezível, sobretudo se considerarmos que o ex-presidente foi declarado inelegível até 2030, conforme decisão tomada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 30 de junho de 2023.

No cálculo de seus aliados, quanto mais intensa for a pressão das ruas tanto maior será a possibilidade de anistiar os crimes em série cometidos pelo capitão. Bastaria recordar a tradição bem brasileira de acordos constrangedores e de conciliações macunaímicas.

Ora, as Forças Armadas não chantagearam a sociedade civil decretando a Lei da Anistia em agosto de 1979 para blindar os militares antes de proceder à redemocratização sem eleição direta para presidente da República? Estratégia que evoca a elegante expressão do famoso versículo do “Eclesiastes”:

“O que aconteceu, isso acontecerá; o que sucedeu, isso sucederá: nada de novo sob o sol.” [1]

Ma non troppo — deve ter pensado o leitor ousado e mui criativo da Bíblia, o político Malafaia, pois o diretor da manifestação-show transferiu para o espaço público a tendência que domina certas denominações neopentecostais, qual seja, a adoção de templos com paredes pretas, a fim de realçar o pastor no “palco”, a espetacularização do púlpito, “enriquecido” com efeitos dramáticos de luz e raios laser, numa anacrônica atmosfera de discoteca da década de 1980. Na síntese ácida de um pastor alheio a tais “modernidades”:

Fundo preto. Calça rasgada. Tatuagem. Camisa californiana. Não poucas vezes marombado. Linguagem coloquial, descolada. Tudo de mais avançado que pode existir no meio evangélico; a exceção da mentalidade que segue sendo arcaica.[2]

Em tal mentalidade, claro está, a consulta ao texto veterotestamentário se impõe. Foi a ele precisamente que nosso já conhecido mestre de cerimônias recorreu ao apresentar Bolsonaro para a multidão.

Babilônia

 Vale a pena transcrever suas palavras iniciais:

“Graças te damos, Senhor; louvado seja o seu nome.”

 A mescla consagrada pelo uso cotidiano da segunda com a terceira pessoa do singular, sem qualquer preocupação com a norma culta, confirma a observação de Sergio Dusilek acerca da “linguagem descolada”.

A sequência é reveladora e não deixe de prestar atenção na trilha sonora pontuando todas as falas, por vezes como se fosse pura sonoplastia:

Gente… A Bíblia fala que Sidrac, Misac e Abdênago… Deus não os impediu de entrar na fornalha. Mas o senhor o (sic) impediu de (sic) que o fogo o (sic) pegasse.

Não farei comentário algum sobre o vernáculo — a misericórdia necessita da discrição. Concentremos nossa atenção na primazia concedida a três personagens do Livro de Daniel, cujo contexto histórico remete ao Cativeiro da Babilônia, que, aliás, tratamos na coluna anterior.

Eis como se descreve a situação no Antigo Testamento. Após a deportação dos judeus, Nabucodonosor II “ordenou a Asfenez, chefe dos eunucos, que selecionasse alguns israelitas de sangue real e da nobreza”, a fim de prestar serviços ao rei. Pois bem:

“Entre eles havia alguns judeus: Daniel, Ananias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos mudou-lhes os nomes, chamando Daniel de Baltasar, Ananias de Sidrac, Misael de Misac, e Azarias de Abdênago.” [3]

 Os quatro rapidamente se destacaram por suas qualidades, e, “além disso, Daniel sabia interpretar visões e sonhos”. [4] Outros súditos do rei invejavam essa proeminência e decidiram agir.

No capítulo 3, desenvolve-se a intriga que levou à punição mencionada pelo mestre de cerimônias. A oportunidade não poderia ser mais conspícua: “O rei Nabucodonosor fez uma estátua de ouro, com trinta metros de altura por três de largura, e o colocou na planície de Dura, província da Babilônia”.

Tanto esforço exigia sua adoração como autêntica divindade a que todos deveriam se submeter. Os três judeus, contudo, ainda que tivessem adotado novos nomes, em nada alteraram sua fé. Recusaram-se, portanto, a adorar a imagem. Foram prontamente denunciados pelos que cobiçavam sua posição:

“Nabucodonosor, furioso com Sidrac, Misac e Abdênago e com o rosto alterado pela raiva, mandou acender o forno sete vezes mais do que o costume, e ordenou a alguns de seus soldados mais robustos que amarrassem Sidrac, Misac e Abdênago e os atirassem no forno aceso abrasador.” [5]

O locutor não se demorou no significado da passagem, ao qual retornarei. Vejamos agora a sequência de seu raciocínio:

Deus não impediu que Davi enfrentasse Golias, mas impediu que Golias vencesse. E hoje nós vamos dizer à Nação brasileira que este homem está sobre (sic) as bênçãos de Deus e da Nação Brasileira.

(Ato falho: Bolsonaro não está sob as bênçãos de Deus, mas sobre elas. Tropeço gramatical que vale por todo um ensaio acerca da subordinação da fé sincera de milhões de pessoas ao projeto político autoritário de um punhado de pastores oportunistas).

Hebron

A associação do Messias Bolsonaro com o rei Davi é central na estratégia de manipulação do repertório bíblico por parte de líderes religiosos, metamorfoseados em políticos de ocasião.

Essa estratégia tem uma dupla dimensão. De um lado, assinala o reinado exitoso de Davi e sua luta contra Golias; de outro, valoriza a imagem do “pecador ungido”, propícia para justificar nomes como Jair Messias Bolsonaro e Donald J. Trump.

(Na próxima coluna, ao tratar da Teologia do Domínio, recuperarei os pecados cometidos pelo rei Davi e a hermenêutica perversa de sua apropriação pela extrema direita.)

Comecemos com o enfrentamento que parecia insensato. No “Primeiro Livro de Samuel” encontramos o episódio. O capítulo 17 introduz o personagem em tese imbatível, cuja derrota deu origem a uma das narrativas mais apreciadas do Antigo Testamento. Os filisteus reuniram seu exército para a guerra e contavam com uma arma única:

“Do exército filisteu adiantou-se um valente, chamado Golias, natural de Gat, com quase três metros de altura.

[…]

Golias parou e gritou às fileiras de Israel:

[…]

– Eu hoje desafio o exército de Israel! Dai-me um homem e lutaremos corpo a corpo.

Saul e os israelitas ouviram o desafio dos filisteus e se encheram de medo.” [6]

Por quarenta dias o filisteu renovou seu desafio sem que um único israelita ousasse aceitá-lo. Coube ao jovem Davi, pastor de ovelhas, realizar o improvável e triunfar sobre Golias.

E só pôde fazê-lo porque, em lugar de encarar o adversário em seu terreno, isto é, no domínio da força bruta, lançou mão da astúcia e da habilidade, a fim de evitar o corpo a corpo suicida:

“Quando o filisteu se pôs em marcha e se aproxima de Davi, este saiu da formação e correu velozmente ne direção do filisteu: pôs a mão no bornal, tirou uma pedra, disparou a funda e atingiu o filisteu na testa: a pedra se encravou na testa, e ele caiu de bruços sobre a terra.” [7]

Os alquimistas nunca descobriram a pedra filosofal, capaz de converter metais básicos em ouro; já os bolsonaristas obtiveram êxito e tudo transformam em símbolos que relacionam a seu próprio Messias.

Pois não é tudo cristalino? Golias é a metáfora do Mecanismo, da Engrenagem, do Esquema — de acordo com o gosto do cliente. “Como se” fosse o jovem Davi redivivo, Bolsonaro derrotou o Sistema empregando a funda que muitas vezes empunha como prova do que sempre repete: chegou ao poder graças a um modesto aparelho celular, ou seja, à internet — essa promessa de liberdade assegurada pelo poderoso homem estrangeiro, o Ciro dos tempos céleres que correm, Elon Musk.

Avenida Atlântica

Em outras palavras, o folclórico mestre de cerimônias não tem nada de tolo. Em sua analogia com o Davi que triunfa sobre Golias, Bolsonaro surge como um homem perseguido, não em virtude de seus crimes, mas porque enfrentou o Mecanismo!

Essa chave de leitura permite resgatar o vídeo que gravei na Avenida Atlântica, no dia 21 de abril.

Vimos na coluna passada que, com argúcia retórica, o locutor-alquimista converteu Daniel em Bolsonaro. Qual a funcionalidade do passe de mágica? A resposta é inequívoca: reforçar a narrativa da perseguição injusta.

Afinal, a leitura do capítulo 6 do “Livro de Daniel” não deixa margem a dúvida: o profeta é lançado à Cova dos Leões não porque cometeu crimes, mas em virtude da fé inabalável que nutria por seu Deus.

De igual modo, essa foi a razão do castigo de Sidrac, Misac e Abdênago. E, como eles, Daniel também sobreviveu à provação, e em recompensa tornou-se ainda mais poderoso:

“Então o rei Dario escreveu a todos os povos, nações e línguas da terra:

‘Paz e bem-estar! Ordeno e mando: Em meu império, todos respeitem e temam o Deus de Daniel.’

Foi assim que Daniel prosperou durante o reino de Dario e de Ciro da Pérsia.” [8]

Reconhecida a injustiça e celebrada sua cruzada antissistêmica, Bolsonaro-Davi derrotará o gigante Golias-Alexandre de Moraes, e Bolsonaro-Daniel sairá incólume da Cova do STF-TSE.

Tal nível de manipulação hermenêutica seria inconcebível sem o fundamentalismo religioso definidor da Teologia do Domínio.

(Você já sabe: o tema da próxima coluna.)

[1] Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). Eclesiastes, 1: 9. São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006, p. 1489-1490. Citarei sempre essa edição.
[2] Sergio Dusilek. “Pastores Cool no visual, mas vintage na pregação”. In: Observatório Evangélico: https://www.observatorioevangelico.org/pastores-cool-no-visual-mas-vintage-na-pregacao/.
[3] Na primeira citação, Daniel 1:3; na segunda passagem, Daniel 1: 6-7. Op. cit., p. 2129.
[4] Daniel 1:17, p. 2130.
[5] Na primeira citação, Daniel 3:1; na segunda passagem, Daniel 3: 19-20. Op. cit., p. 2133-34 e p. 2135.
[6] Na primeira citação, I Samuel 17: 4; no segundo trecho, I Samuel 17: 8; na terceira passagem, I Samuel 17: 10-11. Op. cit., p. 522.
[7] I Samuel 17: 48-50. Op. cit., p. 524.
[8] Daniel 6: 26-29. Op. cit., p. 2147-2148.

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