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Trump: Por quê? Por quê? Por quê?

Vai levar muito tempo até que se consiga entender o processo de autofagia daquela que, durante quase 300 anos, foi a maior democracia ocidental
07/11/2024 | 05h47

Por Fabio Pannunzio

Vai levar muito tempo até que se consiga entender o processo de autofagia daquela que, durante quase 300 anos, foi a maior democracia ocidental. Mas as razões que levaram o eleitor norte-americano a reeleger Donald Trump precisam ser compreendidas para que, no futuro, o planeta possa ser devolvido aos paradigmas civilizatórios abertos pelo Iluminismo.

O que se viu em todos os cantos dos Estados Unidos foi um festival de paradoxos. Latinos emigrados de Cuba, que invariavelmente chegaram ao país como clandestinos fugindo do regime castrista, defendendo o fechamento das fronteiras para seus semelhantes; negros de todos os quadrantes votando em brancos abertamente segregacionistas; mulheres oprimidas pela misoginia entregando seus votos a uma plataforma que despreza todas as conquistas femininas dos últimos cem anos. Nada disso parece fazer sentido numa sociedade que, há exatos 16 anos, ao eleger Barack Obama, pretendia depurar os preconceitos e restaurar um mínimo de dignidade e equidade entre os seus.

Um debate estéril tomou as redes sociais, apontando razões simplistas que não explicam o ocorrido. “É a economia, estúpido”, disseram alguns mais apressados, repetindo o bordão do marqueteiro James Carville. “É a inflação, estúpido”, ou a má condução da política econômica, rebateram outros. Talvez não seja nem uma coisa, nem outra, embora esses fatores certamente tenham influenciado a opinião pública estadunidense.

O fenômeno que tomou conta do país se materializou do centro para as bordas litorâneas (nem todas, é verdade). Foi o chamado redneck, o caipira americano, quem votou maciçamente em Trump. Esse cidadão tem muitas semelhanças com uma entidade que talvez, movida por razões análogas, definiu o placar das eleições municipais brasileiras: o pobre de direita, categoria muito bem definida pelo sociólogo Jessé Souza.

A analogia, no entanto, não explica todo o fenômeno, pois o caipira americano não é necessariamente pobre como o nosso pobre de direita. Ele tem emprego, salário, os filhos estudam em boas escolas públicas até o fim do ensino médio e só trabalham nas férias para complementar a mesada. Depois, se a família tiver uma boa poupança, seguem para alguma universidade, onde aprenderão uma carreira provavelmente bem-sucedida, enquanto fecham os olhos para o mundo.

O caipira americano não sabe o que é solidariedade — além de ações voluntárias eventuais nas paróquias que costumam frequentar aos domingos, suficientes para purgar sua culpa protestante. Eles se contentam com soluções individuais, como pagar caro aos convênios médicos, sem questionar a construção de um sistema coletivo que universalize o acesso à saúde, o que beneficiaria a todos, pois não admitem arcar com uma parcela que não pode ser honrada pelos eventualmente desvalidos.

Também não conhecem as palavras continência e temperança. Eles estão engordando epidemicamente enquanto consomem excedentes de carboidratos e proteínas que faltam aos miseráveis do resto do planeta. Sessenta e cinco por cento estão acima do peso, 40% são obesos mórbidos. Eles morrem com as artérias entupidas de gordura saturada, mas vivem o suficiente para pagar a hipoteca e as dívidas do cartão de crédito, e é isso que importa numa sociedade em que a vida é balizada pelo consumo. Assim, as promessas de uma América novamente próspera, grande e consumista também parecem fazer todo o sentido.

Claro, os aluguéis estão pela hora da morte, e o supermercado hoje é caro como nunca. Mas será que isso lhes permite fechar, por exemplo, os olhos para a urgência climática, para ameaças como os furacões cada vez mais potentes e ameaçadores nos arredores do Golfo do México? Bem, para quem já esqueceu o desempenho pífio na crise da covid, que matou 1,2 milhão de pessoas, tudo é possível. Tragédias coletivas podem até inspirar gestos individuais de empatia, mas não deixam registros capazes de criar uma didática, sequer uma lição política — lá como cá.

Pode ser que os cientistas políticos e os sociólogos que vão se debruçar sobre o comportamento do eleitor americano cheguem à conclusão de que as pessoas agiram movidas pelo ressentimento, pelo ódio ao diferente e ao identitarismo. Pode ser que elas tenham se cansado do coro das minorias, que enxergam como uma ameaça ao American Way of Life.

Talvez elas tenham se cansado da “ameaça” de ver seus filhos estudando em escolas laicas, às quais é comum atribuir-se a causa da “conversão” dos garotos e garotas à homossexualidade. Para essa gente temerosa e oprimida, o comportamento insidioso decorrente da emancipação feminina ainda é um bicho de sete cabeças. E, já que não podem devolver filhas e esposas ao cárcere das cozinhas e do analfabetismo compulsório, ao menos podem negar seu voto a uma mulher negra que um dia se permitiu sonhar em presidir o Império decadente.

O incrível é que o futuro, se é que existe um futuro, já se pode vislumbrar nas entrelinhas. Ao saudar seus próceres, Trump nominou apenas uma pessoa — o bilionário Elon Musk, que comprou o Twitter para utilizá-lo como plataforma disseminadora de fake news a serviço da pior direita planetária. Foi ele quem recebeu os adjetivos “gênio” e “anjo” do presidente agora eleito. Como todos sabem que ele é um homem de ambições intergalácticas, é bem provável que, diante da proibição constitucional de disputar um terceiro mandato, Trump tenha apontado hoje aquele que quer ver sucedê-lo.

Para uma sociedade cega por suas próprias contradições, os sonhos malucos do “gênio” Musk talvez sirvam mesmo de alento. Afinal, o astral na Terra está ruim, e o niilismo da extrema direita não oferece nenhuma alternativa para mitigá-lo. Ao contrário: com Trump de volta ao maior e mais poderoso trono do sistema solar, com o botão vermelho de volta ao controle das suas mãos, talvez a esperança esteja mesmo no espaço, a anos-luz de distância de um planeta em que os mais bem aquinhoados representantes de uma espécie supostamente inteligente decidiram, por vontade própria, renunciar ao processo civilizatório e a quase tudo aquilo que conquistaram de humanidade nos últimos dez mil anos.

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