Acabei de ver o filme. Talvez só o passado exista. Talvez o futuro não passe de uma projeção das experiências do passado no tempo que há-de vir. Faulkner escreveu assim: “O passado não existe. O passado não é sequer passado”. No filme, quando o jornalista pergunta se a democracia não tem coisas mais importantes a fazer do que analisar o passado, percebemos imediatamente que há passados que não querem passar. Dito de melhor forma, há passados que só passam com a verdade sobre eles seja conhecida, nem que essa verdade seja uma simples certidão de óbito. Não há maior prioridade para os homens do que esclarecer o passado. O golpe de 64 vai continuar a assombrar o Brasil.

Certidão de óbito de Rubens Paiva retificada (Foto: Reprodução)
Aquela família era tão bonita. A criançada tão alegre. O deputado tão simpático e afável. Aquele Rio dos anos 1970 era tão cheio de sol e vida que custa a conceber que tudo aquilo convivesse com aquela ditadura feroz e impiedosa. Tristes trópicos. Mas, pronto, agora o filme traz o passado para o presente e o futuro terá um julgamento. O primeiro, o passado, tem desespero e tristeza; o segundo, o julgamento, o futuro, tem expectativa de redenção — o passado não é sequer passado.
E, depois, aqueles tempos. Aquela vida, aquela música, aquela camaradagem. Aqueles eram os tempos em que se fazia política sabendo que a própria vida estava em jogo. Era essa a exigência e era essa também a liberdade — não ter nada a perder. Não havia carreira, nem interesse pessoal, nem lugares de prestígio à espera dos vencedores. Só sentido de justiça e aspiração à liberdade individual como bem mais precioso do mundo. A consciência, a imperiosa consciência de fazer o que está certo. A indiferença é que não podia ser; a “indiferença” que, como dizia Gramsci, “é o peso morto da história”.
Este passado é poderoso. É um passado que repele e que repugna, mas que também, devemos reconhecer, atrai largos sectores sociais brasileiros. Num duplo sentido, é um passado que não resiste a ser presente. Presente como exercício de purgação, presente como possibilidade de salvação. Desta última vez não contaram com a cumplicidade social generalizada, nem com o medo do comunismo, nem com a telefonista da embaixada dos Estados Unidos da América. Desta vez havia um mundo hostil e um resultado eleitoral que lhes retirou razão de ser. E mesmo assim tentaram. E agora, desta vez, o passado regressa de novo como julgamento, como promessa de regeneração. O que podemos desejar é que esse regresso tenha grandeza. Que ninguém veja ali sinais de vingança, mas de superioridade moral. Que esteja à altura da singular história da família de Rubens Paiva — só a certidão de óbito, por favor.
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