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Por Luciana Oliver Barragán (De Ciudad de México)*

Entre os filmes nomeados ao melhor filme estrangeiro, destacaram-se dois pelo seu forte antagonismo: “Emília Pérez“, dirigido pelo francês Jacques Audiard, e “Ainda estou aqui”, do diretor Walter Salles.

O filme “Ainda estou aqui” foi celebrado no México por oposição. Ou seja, se o Brasil ganhou, foi porque Emília Pérez não ganhou, o que por si só já deixa qualquer mexicano feliz. Ainda mais depois das declarações grosseiras e racistas da atriz principal, Sofía Gascón, e do diretor Jacques Audiard.

Durante as premiações, o vídeo de três apresentadores da emissora TV Azteca celebrando “Ainda estou aqui” e falando mal de “Emília Pérez” foi amplamente compartilhado nas redes sociais. Circulou até mesmo entre o público brasileiro, que, emocionado, recebeu a celebração mexicana com carinho.

Mas será que isso realmente expressou a consciência social e política sobre “Ainda estou aqui” e a crítica ao racismo e ao colonialismo feita ao filme “Emília Pérez”?

Origem do vídeo difundido nas redes sociais

Embora saibamos que os prêmios não têm feito justiça às produções cinematográficas latino-americanas, este é um espaço de forte disputa política.

Desde as primeiras indicações do filme “Emília Pérez”, o público mexicano reagiu firme. O nacionalismo se espalhou desde os espaços mais conservadores até os críticos de esquerda, todos se posicionando contra o filme.

Por isso mesmo é importante destacar que o dono da emissora TV Azteca é o empresário Ricardo Salinas Pliego. Uma figura conhecida por seus ideais conservadores, de ultradireita, misóginos e racistas. Também pelas suas reuniões com o argentino Javier Milei e por impulsionar a carreira política do mexicano de ultradireita Eduardo Verástegui.

Ricardo Salinas Pliego tornou-se um modelo de sucesso para a ultradireita mexicana. Como menciona Mathieu Tourliere, autor do livro “A fórmula de Salinas”, o bilionário “usa a TV Azteca para promover seus interesses e atacar seus adversários com campanhas agressivas, além de utilizá-la como plataforma para premiar seus aliados”.

O que estavam, então, celebrando esses apresentadores da TV de direita mexicana?

Apresentador da TV mexicana comemora o fato de “Emilia Pérez” não ter ganho o Oscar (Foto: Reprodução)

Antagonismos entre os filmes

Os dois filmes usam a mesma tragédia para chegar às suas temáticas centrais: o desaparecimento forçado. No entanto, a sociedade mexicana e a brasileira receberam isso de formas totalmente distintas.

No caso mexicano, o desaparecimento forçado tem sido, e continua sendo, um tema sensível. Segundo dados oficiais, existem 123.149 pessoas desaparecidas e não localizadas no México. O desaparecimento no México, ao contrário do retratado no caso brasileiro, está ligado ao crime organizado e ao narcotráfico, não ao Estado.

Diante dessa realidade devastadora, o filme “Emília Pérez” não reivindica a luta pela dignidade das pessoas que buscam seus desaparecidos a partir das próprias vozes e experiências daqueles que vivem essas situações diariamente.

No entanto, além do conteúdo com o qual “Emília Pérez” retrata o desaparecimento forçado ou o narcotráfico no México, o público mexicano focou no espanhol mal articulado dos personagens. A isso se soma o fato de a direção ter sido feita por um francês que nunca viajou para o território mexicano.

Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva em “Ainda estou aqui”. (Reproduzido por TMDB)

No caso brasileiro, aconteceu algo totalmente diferente. A memória histórica do desaparecimento forçado em “Ainda estou aqui” é narrada de dentro. A partir das vozes dos próprios protagonistas, que, além da família Paiva, são os próprios brasileiros falando e exigindo da sociedade que isso nunca mais se repita. Para isso, precisamos entender a memória como uma questão viva e presente.

O público brasileiro parece estar muito bem demarcado entre direita e esquerda. A direita bolsonarista evidentemente não apoiará essa narrativa. Pelo contrário, hoje o bolsonarismo propõe uma continuação do autoritarismo e da tortura retratados no filme.

Em contraste, o público mexicano não consegue se demarcar diante de “Emília Pérez”. Tampouco diante de “Ainda estou aqui”. Por exemplo, Javier Ibarreche, influenciador de questões sobre cinema no TikTok (e um dos apresentadores da TV Azteca que participa do vídeo difundido nas redes sociais), fala com emoção sobre o filme “Ainda estou aqui”.

Ele elogia a técnica, a atuação e interpreta a situação como uma tragédia inesperada que Eunice Paiva enfrenta individualmente. Ibarreche não consegue conectar a dor da família com a sede de justiça social da população brasileira, que ainda está viva e latente.

A pergunta que fica é: por que as críticas a Emília Pérez no México vieram tanto da direita quanto da esquerda?

Na esquerda, há uma crítica clara ao racismo, eurocentrismo e colonialismo do filme. No entanto, nos setores de direita mexicanos parece que o filme feriu uma espécie de ego colonialista.

O colonialismo interno vigente no México não permite que seja um diretor francês aquele que explique a história nacional. As próprias elites internas do país lutam para ser elas as donas da narrativa.

Nesse sentido, os apresentadores da TV mexicana que celebram e gritam a favor do filme “Ainda estou aqui”, na verdade, não têm a potência política que gostaríamos. Estão dominados pela competição simplista a que nos encurralam as premiações do Oscar.

Será que a cinematografia aporta ao debate político aquilo que o Oscar tira de nós?

 

*Especial para o ICL Notícias

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