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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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A briga olímpica dos rios e mares

O rio Sena e sua sujeira inacreditável
08/08/2024 | 05h00

Que os Jogos Olímpicos não são apenas sobre esportes, todo mundo que tem meio neurônio já sabe. Logo, é também sobre desigualdade, riqueza, racismo, xenofobia, guerra, questões climáticas… enfim, política de cima embaixo. Como é comum neste evento, pontos icônicos da cidade sede são usados como cenários e até mesmo como arenas de competições. Os franceses resolveram exaltar a exuberância de Paris escalando o famoso rio Sena para o front. Sobrou para a cerimônia de abertura, o Triatlo e as Maratonas Aquáticas encararem as águas seculares que marcam a cidade. Tudo ótimo, não fosse o “detalhe” de precisar mergulhar no rio.

A abertura dividiu opiniões. Alguns amaram e outros odiaram o espetáculo que ocupou os seis quilômetros do rio-cenário de tantas histórias literárias e audiovisuais, mas, quando as águas foram requisitadas para competições a unanimidade veio. O mundo inteiro está chocado com o grau de contaminação do Sena.

Algumas modalidades têm o seu charme por não estarem totalmente no controle de quem pratica, ou seja, dependem da parceria com a natureza para acontecer. É o corpo sendo ajudado ou tendo que vencer os obstáculos do elemento natural. Acontece que a barreira mais terrível tem sido, literalmente, a imensa sujeira da humanidade.

Uma grande fortuna foi gasta para colocar o rio em condições de receber o maior evento do planeta. Testes aconteceram, a prefeita e organizadores mergulharam e nadaram para provar que tudo estava em ordem, mas então o que aconteceu?

A arrogância humana só não contava com o volume de detritos a narrar uma história longuíssima de agressões, que agora é devolvida em forma de vexame por adiamentos e atletas contaminados por bactérias, precisando desistir do sonho acalentado em anos de preparação e sacrifícios. O triatlo já aconteceu e levou gente para o hospital. Este texto foi escrito após um cancelamento de treino das maratonas, no dia 6/08, que terá finais hoje, dia 8/08. O saldo é negativo. Já deu errado independente dos resultados técnicos.

O Brasil construiu nas últimas duas décadas uma trajetória de sucesso nas maratonas aquáticas. Há muitos anos brasileiros estão sempre nos pódios das Copa do Mundo e dos Campeonatos Mundiais organizados pela Federação Internacional de Natação — FINA. A modalidade deu, em 2016, a única medalha brasileira dos esportes aquáticos, com o bronze de Poliana Okimoto, na disputa realizada em Copacabana.  Aliás, Copacabana é um capítulo à parte e voltamos ao primeiro parágrafo deste texto: Jogos Olímpicos são TAMBÉM sobre esportes, mas não somente.

Quando a praia carioca foi anunciada como arena de competição, começou o inferno para os organizadores. As equipes e a imprensa, principalmente norte-americanas e dos países europeus, iniciaram uma campanha de desconfiança sobre a qualidade das águas para receber competidores tão valiosos. Não passava uma semana sem um mini caos alarmante sobre a possibilidade de desistência de nomes importantes, mudança de local de prova, enfim, para muita gente Copacabana era, a priori e sem nenhum teste comprobatório, imunda e inapropriada pelo simples fato de estar no Brasil.

Após uma infinidade de procedimentos, visitas de acompanhamento sucessivas e um evento teste, quando os Jogos foram declarados abertos na cerimônia realizada no estádio do Maracanã, Copacabana estava com águas mais que apropriadas para receber homens e mulheres que disputariam sob os olhares do planeta e de uma plateia que lotou as areias e a pista.

Por que o Sena não enfrentou nem metade da desconfiança que Copacabana teve que encarar ao longo dos oito anos de preparação da cidade do Rio? Por que o porto de Odaiba, em Tóquio, também com problemas gigantes com a qualidade da água até o último minuto não sofreu o mesmo grau de ataques?  A pergunta, obviamente, é retórica.

A brasileira Ana Marcela Cunha, ouro nos Jogos de 2020, hepta campeã mundial entre provas de 10 e 25 km e seis vezes escolhida melhor do mundo na modalidade — assim como todos e todas que tiveram e terão o Sena como raia –, precisou aguardar os humores da poluição para não competir com as bactérias como principais adversárias. Relembrando, há dois dias do começo da maratona o treinamento foi cancelado.

Como não há rio que não deságue no mar, no fim de tudo isto o meio ambiente é a maior vítima. A lição que o Sena, Odaiba e Copacabana (A praia sofre também!) nos deixam é para que olhemos o mundo com menos preconceitos, menos supervalorização apenas por conta do poderio das superpotências e mais amor pelos recursos naturais do planeta que habitamos, mas que não nos suporta mais.

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