Por Jeniffer Mendonça — Ponte Jornalismo
O Morro São Bento chorou. Mais uma vez. Diversos moradores saíram de suas casas cabisbaixos, estudantes de escolas estaduais próximas deixaram as salas de aula com lágrimas nos olhos e comerciantes observavam com tristeza o cortejo de carros e motos acelerando até o Cemitério da Areia Branca, em Santos, no litoral paulista, na manhã da quinta-feira (7).
Cobertos por uma garoa fina, os veículos seguiam o carro funerário que guardava o corpo de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, morto na noite terça-feira (5), durante uma ação da Polícia Militar em Santos. O menino brincava na porta de casa com um grupo de cerca de 15 crianças quando foi baleado na barriga e não sobreviveu. Gregory Ribeiro Vasconcelos, de 17 anos, também foi morto no local e um adolescente de 15 anos ficou ferido.
A cozinheira escolar Beatriz da Silva Rosa teve de acompanhar o enterro em uma cadeira de rodas enquanto era amparada por familiares. “Eles poderiam ter tirado qualquer coisa de mim, mas não meu filho”, lamentava, chorando.
Em um intervalo de 10 meses, além do filho pequeno, a jovem perdeu o companheiro Leonel Andrade Santos, 36. Leonel foi fuzilado junto com o amigo de infância Jefferson Ramos Miranda em fevereiro, durante a Operação Verão — que deixou mais de 56 mortos pelas forças policiais na Baixada Santista. Leonel tinha deficiência física e foi baleado também a poucos metros de sua residência quando conversava com Jefferson.
“É um absurdo, estão acabando com a vida das pessoas”, desabafou a assistente jurídica Luciana de Castro, amiga da família e que também perdeu o marido, Allan de Morais Santos, 36, durante a Operação Verão. “Mataram o Allan saindo do trabalho e disseram que ele era o Príncipe do PCC“, disse, indignada.
Ao longo de todo o trajeto e até do lado de fora do cemitério, polícia se fez presente de forma intimidatória. Viaturas do 2º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP) e da Tropa de Choque acompanharam os veículos. Parte dos policiais chegou a apontar armas longas aos motociclistas. Antes, uma viatura do 21º Batalhão de Polícia Militar do Interior (BPM/I) estacionou em frente à Santa Casa, onde acontecia o velório, sob a justificativa de “patrulhamento de rotina”.
Dentro do cemitério, familiares, amigos e muitas crianças seguravam flores e balões brancos, que foram soltos aos gritos de “justiça”. Uma parente de Ryan tomou a frente, indignada:
“Isso é uma palhaçada, isso tem que acabar. A lei está aí para eles serem presos e não serem mortos. E ainda [os policiais] virem atirando para pegar numa criança de 4 anos. Uma criança de 4 anos. Por que eles não pararam os moleques e levaram presos ao invés de atirar e matar uma criança? Agora a mãe dele está aqui, é ela que vai sofrer pela perda dele assim como todo mundo aqui está sofrendo”, disse uma familiar de Ryan.
“Isso tem que acabar. Eles vem em saída de escola quando as crianças estão saindo, é de manhã quando as crianças estão entrando na creche. Eles não têm respeito com ninguém”
Na saída, o ouvidor das polícias, Claudio Aparecido da Silva, viu uma movimentação de policiais da Força Tática do 21º BPM/I durante uma abordagem a um motociclista negro por estar sem placa no veículo.
Segundo ele e demais testemunhas, o homem levou um tapa na cabeça e questionou o motivo. Um dos PMs teria dito “para você acordar”. A polícia disse que iria apreender a motocicleta, mas depois desistiu e o homem foi liberado depois de apresentar a placa e dizer que ela tinha caído no caminho. O cabo Kenedy, ao liberar o motociclista, disse que não queria tumulto.
“Quem está querendo tumultuar aqui, cabo? Quem veio tumultuar foram vocês. Respeite a vida das pessoas. Quem veio tumultuar foi o senhor que agrediu o motociclista”, rebateu o ouvidor. “Ele falou que foi agredido? Então ele que ele represente contra a gente, o senhor não tem nada a ver com isso”, respondeu o cabo.
O ouvidor foi questionar o motivo da abordagem e o fato de que o sargento Ailton estava com câmera corporal dentro de um bolso do colete e não com um suporte correto para acoplar o equipamento. A partir dali começou um bate-boca em que os demais policiais tentaram afastá-lo, colocando a mão sob seu ombro, e fizeram o mesmo com a deputada estadual Paula Nunes (Psol), que pediram para que não encostassem neles, e com a reportagem da Ponte que filmava o que acontecia.
O sargento se contradisse algumas vezes ao explicar que a viatura não estava ali por causa do enterro. Primeiro, afirmou que parou para abordar a motocicleta sem placa. Depois, alegou que foi designado para atuar ali, já que o batalhão é do Guarujá, por causa da possibilidade de greve de motoristas de caminhão. E a terceira narrativa é de que poderia haver queima de ônibus por causa do enterro de um dos mortos desta semana.
O ouvidor disse que ligou para o comandante-geral, coronel Cássio Araújo de Freitas, sobre a abordagem que, por sua vez, determinou a ida do comandante do 6º BPM/I, major Nakaharada. Quando o major chegou ao local, os policiais já tinham ido embora, mas pediu as imagens gravadas pela reportagem para encaminhar ao comando do batalhão correspondente.
“Quando tem morte de traficante, eles dão tiro de fuzil, registram e põem na rede social. Isso é ruim para eles, para cidade e para todo mundo porque dá princípio de desordem. Então, tem esse procedimento de não deixar passar pelo morro. Só que esse procedimento não era para ser aplicado no velório do menino. Se tem aglomeração, a gente acompanha de longe, ostensivamente, para evitar tumulto e queima de ônibus”, declarou à Ponte.
Polícia desrespeita os mortos, diz ouvidor
Para o ouvidor, não é a primeira vez que a polícia tem atuado de forma intimidatória em velórios na Baixada Santista. “É um absurdo o que estão fazendo no estado de São Paulo. Virou política governamental colocar a polícia em velório de gente que morre pelas mãos da polícia, intimidar as pessoas”, declarou.
“É vergonhoso, é o cúmulo da falta de respeito aos direitos fundamentais das pessoas. Nesse estado aqui não vai poder mais ter ato fúnebre?”, questiona o ouvidor das polícias Cláudio Aparecido da Silva.
Ele também repudiou o posicionamento do governo do estado ao citar a declaração do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, que chamou de “vitimismo barato” o questionamento da deputada Paula Nunes sobre o caso durante audiência nesta quarta-feira (6/11).
“Lamento que uma deputada estadual faça um vitimismo barato na Assembleia Legislativa, usando a morte de um menino de 4 anos para fazer politicagem. Não vou falar sobre a ocorrência, quem tem que falar sobre a ocorrência é o inquérito da Polícia Militar que foi instaurado”, disse o secretário.
“A todo instante eles constroem narrativas para poder desconstruir o sentimento popular, que é um sentimento de insegurança, de medo, de tragédia o tempo inteiro e a morte do Rian é a demonstração clássica disso”, criticou Claudio. “A gente não tem condição de admitir que a principal política de segurança pública que o Estado tem a oferecer para as pessoas seja a política de morte. Isso é inadmissível”.
Ainda na quarta-feira, a Secretaria da Segurança Pública tinha convocado uma coletiva de imprensa sobre as mortes da criança e do adolescente. O porta-voz da PM, coronel Emerson Massera, disse que o projétil que atingiu Ryan “provavelmente” partiu da própria polícia e que sete foram afastados das atividades nas ruas.
Ele considerou um “desfecho trágico”, mas gastou a maior parte do tempo em defender os policiais envolvidos antes de qualquer investigação.
“Nós não estamos considerando esses policiais culpados. Os policiais são vítimas. Eles foram atacados, eles foram agredidos, protegeram a vida, efetuaram disparos para proteger a própria vida e, com certeza, podem ter certeza absoluta, que os policiais que participaram disso estão muito afetados, atingidos e comovidos pelo resultado que não era nunca o desejado”, declarou porta-voz da PM.
Depois ele disse que Gregory “morreu em confronto com a polícia” antes de apuração e que ele “ostentava armas nas redes sociais”. O coronel ainda defendeu a redução da maioridade penal embora não seja da competência do governo estadual legislar sobre o assunto.
“E uma questão que a gente precisa retomar urgentemente é a discussão sobre a maioridade penal. É fato que o crime organizado, facções criminosas, o tráfico, utiliza a mão de obra de adolescentes no crime, e isso é algo que a sociedade precisa discutir”, declarou.
A ação e posição do poder público ainda foram repudiados por outras 12 entidades de direitos humanos que organizaram uma comitiva junto à Ouvidoria para acompanhar o velório e o enterro de Ryan.
“O governador e principalmente o secretário de segurança pública não respeita as famílias e a a gente vê isso por causa da posição dos próprios policiais: eles agem como eles tivessem a cobertura. Eles não estão nem aí, como diz a fala do governador”, criticou Debora Maria da Silva, fundadora do Movimento Independente Mães de Maio.
Ela fazia menção à fala de Tarcísio de Freitas, que menosprezou as denúncias de violência policial em março, ao dizer que “o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não tô nem aí”.
“Uma política de segurança pública o governo tem que entender que ela tem que ser moradia digna, ela tem que ter educação, ela tem que ter uma segurança alimentar. Não é só na ponta do fuzil”, afirma Debora.
“O governo, se ele usasse inteligência… A inteligência não solta um tiro. Agora quando a gente tem um governo que é um coveiro e tem um secretário de segurança pública que é a pá que enterra nossos filhos, a gente vê uma política dessa fascista”, disse Débora.
Mulher baleada diz que não houve troca de tiros
Uma jovem de 24 anos que foi baleada de raspão no braço próximo a Ryan contou que não houve troca de tiros e que apenas os policiais atiraram em direção aos adolescentes. Segundo ela, há um ponto de venda de drogas próximo ao local que estava vazio quando tudo aconteceu. De acordo com o site Metrópoles, a sobrevivente teve a casa vasculhada durante o enterro da criança nesta quinta-feira (7/11).
A versão é diferente da dada pela polícia. O caso foi levado ao 5º DP de Santos pelo Jorge Luiz Tilly Filho, que não está claro se participou da ocorrência. Ele disse que tomou conhecimento de que três viaturas da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) estavam pelas ruas do Morro São Bento quando se depararam com cerca de 10 pessoas dos quais quatro estariam divididos em duas motocicletas.
Segundo ele, esse grupo teria retornado a um “local conhecido como ponto de tráfico de drogas”, o que fez as equipes irem a pé onde os “criminosos” se esconderam.
Ao chegarem ali, os policiais dizem que foram recebidos a tiros e pediram reforço de uma viatura do 6º BPM/I a qual teria gerado “um efeito surpresa” pois “sete ou oito” pessoas fugiram ao verem o veículo. Com a “surpresa”, teria ocorrido “novo confronto” do qual dois adolescentes foram baleados e o restante fugiu pela mata.
Nenhum policial usava câmeras corporais
É informado no boletim de ocorrência que três motocicletas foram apreendidas, sendo uma furtada e outra sem identificação, além de uma pistola calibre 9mm e um revólver calibre 38, ambos de numeração raspada, e dois rádios transmissores. Gregory foi levado à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Zona Noroeste, mas não resistiu. O outro adolescente, de 15 anos, foi levado à Santa Casa. A Ponte apurou que ele já foi liberado.
O boletim de ocorrência sobre a morte de Ryan foi anexado a este às 10h06 do dia seguinte e uma hora antes da coletiva de imprensa marcada pela SSP.
É descrito que foi feita perícia em todo o perímetro da ocorrência, mas com relação à morte da criança não foi realizada pois não foi identificado o local exato e “naquele momento seria inviável a realização de qualquer exame”, mas não há maiores detalhes sobre o motivo. Além disso, se fosse identificado projétil no corpo da criança, o que o coronel Emerson Massera havia confirmado, será feito o confronto balístico para saber de qual arma partiu o tiro que matou Ryan.
Uma terceira edição feita no documento, já às 11h50, ou seja, depois da coletiva de imprensa, informa que “a priori” não seria possível traçar “eventual correlação” entre os dois casos pela impossibilidade de perícia e que caberia a investigação elucidar.
O delegado Jorge Alvaro Gonçalves Cruz indicou que foram apreendidas as seguintes armas dos policiais: um fuzil calibre 556 relacionado Alex Ferreira Alvino, uma espingarda calibre 12 relacionada a Clovis Damasceno de Carvalho Junior, três pistolas .40 de Renan dos Anjos Anacleto, Mauro Gomes de Moraes Junior e Atila Araujo Valverde Delgado. Fora esses, no registro ainda aparece como vítima policial Michel Rodrigues da Silva e como testemunha Marcelo Oliveira Silva.
Nenhum dos policiais usavam câmeras corporais. O 6º BPM/I não foi contemplado pelo programa.
O que dizem as autoridades
Sobre a abordagem ocorrida fora do cemitério e a presença da PM durante o cortejo, a Fator F, assessoria terceirizada da SSP, enviou a seguinte nota:
A Polícia Militar vai analisar as denúncias citadas. As ações de patrulhamento preventivo e ostensivo na região foram intensificadas desde a última terça-feira (5), com unidades do policiamento de área e de outros batalhões.
A Ponte procurou o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) sobre as medidas tomadas em relação às mortes, o motivo de não ter acompanhado o cortejo bem como os vídeos sobre a abordagem e intimidação da polícia no local, além de ter perguntado se haverá convocação do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (GAESP) para atuar no caso. A assessoria enviou a resposta:
MPSP está acompanhando as investigações das Polícias Civil e Militar, além de ter procurado contato e se colocado à disposição da família da vítima.
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