Em 2020, em meio às estatísticas já fúnebres da pandemia de Covid-19, o mundo se chocou com mais uma ocorrência do racismo: George Floyd, homem negro que foi abordado de forma extremamente violenta pela política de Mineápolis, em Minnesota (Estados Unidos), e morreu asfixiado após passar sete minutos com o joelho de um policial sobre seu pescoço. O antirracismo tomou as ruas de todo o planeta, e o movimento #VidasNegrasImportam ganhou mais visibilidade, mais adeptos e mais argumentos para as reivindicações.
No Brasil, infelizmente, histórias de pessoas negras sendo mortas em circunstâncias quase inexplicáveis se acumulam no cotidiano das cidades. Em 2019, o músico Evaldo Santos morreu depois que seu carro foi alvejado com 80 tiros de fuzis – militares do exército confundiram o veículo com outro, da mesma cor, que havia sido roubado pouco antes, na zona norte do Rio.
Dias antes da morte de Floyd, o jovem João Pedro foi baleado dentro de casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, enquanto jogava videogame com os amigos. Impulsionado por tantos fatos chocantes, o Brasil, mesmo usando máscaras, também tomou as ruas pedindo o fim da violência racial.
E, se as pequenas vitórias precisam ser celebradas, em 2024 a Espanha teve sua primeira condenação por racismo – punindo torcedores por atos discriminatórios contra Vini Jr. Nas redes sociais, o jogador brasileiro destacou que não se calará diante do preconceito e que continua lutando contra o racismo.
O processo histórico do racismo no Brasil
A divisão entre raças no Brasil é um processo social que remonta a formação histórica do país desde a chegada dos colonizadores europeus na Idade Média. Se logo após a chegada dos portugueses a “raça inferior” era a dos indígenas, não demorou muito para que esse rótulo fosse transferido aos negros.
Trazidos forçadamente do continente africano desde o século XVI, eles compuseram a força de trabalho nacional, majoritariamente escravizada, até 1888. Pesquisadores estimam que 4 milhões de homens, mulheres e crianças foram traficados principalmente de Moçambique, Angola e da Costa do Marfim.
Seus destinos eram principalmente os engenhos e a lavoura de cana-de-açúcar, motor da economia colonial entre os séculos XV e XVII, mas o trabalho escravo também foi explorado em outros setores econômicos, como a pecuária e outras culturas agrícolas, além do trabalho doméstico e ocupações urbanas.
Infelizmente, a abolição da escravatura no país não veio acompanhada de uma inclusão adequada do grupo de ex-escravizados na economia brasileira. Nesse momento, tem início a segregação social que ainda não teve reparação histórica no Brasil.
A ferida aberta do racismo é visível em diversos recortes da sociedade brasileira. Das estatísticas de violência ao mercado profissional, é seguro dizer que as barreiras aumentam quanto mais escuro for o tom da pele.
E é por isso que se torna imperativo que todos, principalmente pessoas brancas, se engajem ativamente na luta pela igualdade racial. A resposta, inclusive, precisa ser contundente e multidisciplinar para garantir uma sociedade livre de preconceitos.
O Brasil é um país racista, mas não assume seus preconceitos
As estatísticas não mentem: a sociedade brasileira discrimina pessoas negras. Mesmo sendo a maioria da população, pretos e pardos têm mais dificuldade em garantir sua educação, conseguir empregos, moradia e até mesmo a própria liberdade.
A associação automática da cor da pele a competências ou caráter é uma das heranças dos mais de três séculos de escravidão que sustentaram a economia brasileira durante o período colonial. Outro “item” desse legado é a sutileza com que o racismo é praticado no Brasil.
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) os negros são 56% da população brasileira e totalizam quase 70% dos encarcerados. Esse número não implica que negros cometem mais crimes do que brancos. Na verdade, essa estatística representa a discriminação da estrutura de segurança pública e de justiça, que tem como hábito implicar às pessoas negras a prática de crimes.
O estudo “Percepções sobre o racismo no Brasil” elaborado em 2023 pelo instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), a pedido do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto Seta (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista) traz dados sobre essa desigualdade.
Enquanto mais de 80% dos que responderam à pesquisa consideram o Brasil um país racista, apenas 11% reconhecem ter atitudes assim, e apenas 4% de pessoas brancas concordam sobre terem práticas discriminatórias nesse aspecto.
É justamente nessa discrepância que percebemos o racismo estrutural, a discriminação presente em todas as estruturas sociais a ponto de tornar-se a base de uma sociedade inteira, e o privilégio dado historicamente a pessoas de pele branca em detrimento à população negra.
Do lugar de moradia e da vulnerabilidade diante das tragédias climáticas, passando pelo acesso à educação e aos cuidados com a saúde, até o mercado de trabalho e as diferenças de salários, o racismo muitas vezes nem é percebido como parte da nossa sociedade — a não ser por quem vive na pele a discriminação constante.
O chamado coletivo da luta antirracista
A filósofa Ângela Davis já dizia, no livro “Mulheres, raça e classe”, que “em uma sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”. A escritora e intelectual estadunidense reflete que o combate ao racismo deve ser uma responsabilidade de todos, não apenas das pessoas negras.
Muito mais do que um debate acadêmico, o antirracismo é uma missão diária contra a opressão e a desigualdade, muitas vezes nem mesmo reconhecidas como tal, tamanha a “contaminação” das estruturas com esses preconceitos.
Para ser antirracista, é preciso entender que hoje já existe todo um sistema que exclui constantemente as pessoas negras e que precisamos “parar essa roda”. Devemos apontar comentários ou atitudes racistas quando presenciarmos, atuar ativamente para educar outras pessoas brancas — ao invés de esperar que as vítimas do racismo o façam — e batalhar para que mais políticas públicas sejam executadas pela igualdade racial.
Silenciar-se diante desses preconceitos contribui para que eles continuem existindo. Entender isso é entender a essência do antirracismo e saber que eliminar as barreiras para a população negra não significa transferi-las para outros grupos, mas excluí-las da sociedade.
Antes de dizer que “somos todos humanos” ou que “o movimento negro é apenas para conquistar mais privilégios”, é preciso reconhecer as desigualdades e os benefícios oferecidos às pessoas brancas e o quanto precisamos desconstruir os nossos valores para que possamos construir uma sociedade racialmente igual.
Na Bahia, estado com a maior população que se declara negra no país, a lei estadual 14.631/2023 proíbe condenados por racismo de assumir cargos públicos em todo o estado. Esse é um exemplo de política pública antirracista, mas ainda temos muito trabalho pela frente.
Até 2022, crimes de racismo eram majoritariamente classificados como “injúria racial”. Apenas em 2023 foi promulgada a lei 11.453/2023, que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível.
Educação antirracista: a construção coletiva de um futuro mais justo
A educação antirracista é fundamental para promover a igualdade racial. É preciso lembrar que preconceitos são ensinados e que crianças aprendem ao observar os comportamentos e ouvir as falas de pais e familiares.
Se o primeiro passo para resolver um problema é reconhecer sua existência, precisamos, antes de mais nada, admitir que estamos em um país racista e que estamos suscetíveis a atitudes preconceituosas, mesmo sem perceber. Por isso, a primeira etapa da construção de uma educação antirracista é entender que a estrutura e organização social do Brasil são pautadas na discriminação pela raça.
A partir daí, o caminho inclui estar sempre atento às nossas atitudes e às pessoas ao nosso redor, procurar se manter atualizado e compartilhar esse conhecimento com as outras pessoas — além de, claro, nos posicionar de forma assertiva e não violenta contra todo tipo de comentário. Dessa forma, tornamos todos mais conscientes na luta antirracista, que também é uma luta democrática.
Valorizar a cultura, as diversas identidades e produções da população negra também é uma forma de se educar para o antirracismo. Ao apoiarmos empreendedores e consumirmos produtos e ideias desse grupo, estamos nos abrindo para perspectivas plurais, enriquecendo nosso repertório e fortalecendo as iniciativas dessas pessoas.
O antirracismo para além da educação: como fomentá-lo no dia a dia
A educação é a base da iniciativa para desmantelar as estruturas de opressão racial, mas a luta antirracista vai além.
A representatividade é crucial para construir uma sociedade mais justa e igualitária. Além de criar referências positivas para as gerações mais novas, a variedade racial permite construir uma sociedade mais diversa e inclusiva.
Atualmente, apesar da maior parte da população ser negra, os parlamentares brasileiros são majoritariamente brancos. Inverter essa estatística significa promover mais políticas afirmativas para a inclusão racial e remodelação da sociedade na desconstrução do racismo.
No campo da educação, as políticas de cotas para as universidades públicas também são um exemplo da inclusão. Promulgada em 2012, a Lei de Cotas separa uma parte das vagas nas instituições de ensino superior para minorias raciais (pessoas pretas, pardas, indígenas e, mais recentemente, quilombolas), oriundos da escola pública e/ou de famílias de baixa renda. Essa iniciativa tem fortalecido os grupos beneficiados e aumentou 167% em dez anos, segundo o INEP.
Claro que nem tudo são flores
O mercado de trabalho é um cenário onde as desigualdades continuam estruturando as hierarquias. Uma pesquisa realizada pela Outra Praia, head de governança ambiental, social e corporativa da B&Partners, e publicada pela Fundação Getúlio Vargas revela que menos de 30% das lideranças corporativas são ocupadas por pessoas negras.
Programas sociais para as artes, o esporte e a educação permitem que crianças e jovens em situação de vulnerabilidade — que estatisticamente são predominantemente pretos e pardos — construam um caminho diferente do de seus antepassados, que acabaram em empregos servis por não encontrarem alternativas.
E, permeando todas essas iniciativas, está o debate na sociedade. Hoje, na segunda década do século XXI, fala-se muito mais sobre a igualdade de raças e credos do que há algumas décadas. Isso tem se refletido na identidade da população.
No Censo de 2022, o número de pessoas que se autodeclararam pardas superou o de pessoas brancas pela primeira vez. Especialistas apontam que os debates sobre a questão permitiram que as pessoas sentissem orgulho de suas origens raciais.
Essa é uma conquista, e é preciso lembrar que ainda existem muitas outras a serem obtidas. O racismo desumaniza e machuca, reduzindo as pessoas a meros objetos e expondo-as aos mais variados tipos de violência.
Se antes, essa discriminação era evidenciada pelo tráfico e comércio de pessoas escravizadas, hoje ela pode ser destacada na violência policial, na falta de acessos e oportunidades e nos tantos episódios que atravessam a existência das pessoas negras.
É preciso reconhecer a dignidade e a importância de cada indivíduo, independentemente de sua cor. Mas, ao mesmo tempo, também precisamos da consciência e da mobilização de quem se beneficiou (e continua se beneficiando) desse problema tão sério, tão triste e, infelizmente, tão antigo da nossa sociedade para combater o racismo e fazer do Brasil um país mais igualitário.
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